
O Quarto Fechado nasce de histórias, parágrafos e passagens do homónimo terceiro andamento da Trilogia de Nova Iorque, de Paul Auster.
“(…) neste caso é a própria pessoa o agente da sua destruição; e até mais: o instrumento dessa destruição é precisamente a coisa de que necessita para se manter vivo.”
A Trilogia de Nova Iorque [O Quarto Fechado], Paul Auster
Eis o que é preciso saber: há um pai, uma mãe e uma criança. Quase podia ser um presépio, mas em vez de animais da quinta, há amigos imaginários.
O pai: um homem igual àqueles homens que são todos iguais. Foi responsável pela criação, desenvolvimento e produção em massa de uma arma dez vezes mais rápida e letal do que as que existiam, tornou-se o principal vendedor de armamento para um grande confronto bélico – entretanto findo graças à eficácia da sua invenção – e com isso gerou uma enorme fortuna. Construiu uma gigantesca mansão e procriou uma vez. Contemplou e seu sucesso e viu que tudo era bom.
Pouco depois do segundo ano a viver na nova casa, enquanto dormia, ele começou a sonhar de forma bizarra: estava no meio de uma cidade, mas podia contemplá-la de cima porque o seu corpo era o de uma criatura gigante e encontrava-se muito mais alto do que os prédios, pisava os carros, agarrava pessoas minúsculas aterrorizadas que tentavam escapar das suas garras, comia-as vivas sem sombra de arrependimento, agitava a cauda, qual chicote em chamas, incendiando e derrubando edifícios. O pesadelo da cidade foi-se tornando cada vez mais frequente e vívido, até ao ponto em que o homem já não podia jurar se era ele que sonhava ser aquele monstro, ou se era o monstro que sonhava ser o homem. Às vezes, a meio da noite, a mulher ouvia-o grunhir de forma abafada e entrecortada e quando ela lhe falava sobre isso no dia seguinte, ele nada dizia. E nada disse, nunca. Inchou o peito e convenceu-se novamente de que estava em controlo, de que era tudo uma questão de força de vontade. Sem ajuda de ninguém, fez ele mesmo as pesquisas de que precisava para se livrar do pesadelo: vestiu-se com as melhores peles e enfeitou-se com jóias de osso e marfim, como faziam os invencíveis antigos reis pagãos que nunca tinham medo – foi o que a internet lhe disse para fazer. À medida que a mulher se mostrava mais insistente sobre os sons noturnos e sobre aquela mudança súbita, mais ele se impacientava. Enquanto isso, agora tinha passado a ver o seu pesadelo também durante o dia e de cada vez que pestanejava, microssegundos de fogo apareciam na tela das suas pálpebras.
Com o tempo, um pensamento foi germinando na cabeça da mulher, uma ideia que começou pequena e que rapidamente galopou e tomou terreno até não sobrar mais espaço: um a um, todos os que tinham morrido por via daquelas armas regressariam para cobrar a sua vingança, perseguindo e levando à loucura aquele que fez fortuna com a desgraça. E ela, que vivia debaixo daquele luxuoso tecto e gozava também dos maiores privilégios, teria igual destino.
Repetiu na bobine da sua memória os esconjuros que o ouvia rosnar durante a noite e teve pela primeira vez a certeza de que o homem estava a ser torturado por estas almas. Puxou a fita atrás várias vezes e começou a descobrir padrões e interpretações. Encontrou autênticas constelações de significado no que tinha escutado, retalhos sonoros que eram na verdade símbolos escondidos, revelando novas relações numéricas que surgiam umas atrás das outras. Ali estava um puzzle que se tinha desenvolvido durante meses à sua frente, e ela, despreparada que estava para tudo aquilo, tinha-se limitado até agora a manter a cabeça pousada na almofada e a voltar a dormir.
Quando se sentiu pronta, falou de tudo isto ao homem: falou-lhe das suas descobertas, falou-lhe do puzzle, falou-lhe dos números e dos padrões, falou-lhe de um possível plano para confundir e afastar as almas penadas. Disse-lhe tudo isto nesse dia, no dia seguinte, no dia depois e todos os dias durante semanas a fio, mais alucinada a cada repetição. Até que ele começou a achar que todos os seus esforços para esquecer o pesadelo eram em vão enquanto estivesse perto daquela mulher paranóica e que aliás, muito provavelmente, a culpa de tudo aquilo era dela. De quem mais? Fartou-se de vez, resolveu afastar-se de tudo aquilo. “Pelo menos por uns tempos”, pensou. Escapou para um lugar sem gente e sem fogo: o Ártico.
“(…) Sozinho, com os mantimentos a desaparecerem, decidiu construir um iglu e aguardar que a tempestade amainasse. Passaram-se muitos dias. Temendo sobretudo ser atacado por lobos – pois ouvia-os esfomeados sobre o tecto do iglu (…) começou a notar que as paredes do seu pequeno abrigo estavam gradualmente a fechar-se sobre si. Devido às condições particulares do tempo no exterior, a sua respiração estava literalmente a congelar as paredes, e cada vez que respirava, as paredes tornavam-se cada vez mais espessas e o iglu cada vez mais pequeno, até que por fim quase não havia espaço para o seu próprio corpo.. É sem dúvida uma coisa assustadora, imaginarmo-nos a respirarmos até nos encerrarmos num caixão de gelo (…)”
A Trilogia de Nova Iorque [O Quarto Fechado], Paul Auster
Enfim, o sossego merecido
No deserto boreal.
Desenrola-se o tapete gelado,
Que não se olhe para trás.
Com ossos, com peles enfeitado,
Sua majestade canibal.
Já vendida toda a arma, toda a bala,
Fez fortuna, fez-se rei [qual é o mal?]
Não é medo, é desprezo.
Nem nobreza, é nojo.
Nem cura, nem pena, não quer, não precisa.
Quem ficará para cuidar da casa deixada vazia?
Completamente sozinho constrói
Um trabalho que é para dois.
Uma dor maior num abrigo gelado,
Uma dor deixada para depois.
Chegam os lobos [tantos, tantos, tantos…]
Tudo a morrer de fome.
E agora é ser comido vivo,
Ou fugir, fechar-se, trancar-se [quem é agora o homem?]
Ninguém entra, ninguém sai, acabou.
Asfixiam as paredes sem dó, sem ar, sem voltar atrás.
E não somos ninguém para julgar,
Não somos ninguém para perdoar.
Contemos mentiras de todas as cores
Nessa linha última a cruzar.
Foi lilás, cristal, luz,
Dragão de escama azul,
Foi cardume a rir cor
Até um cintilar, tilintar, caleidoscopiar [rodopio final]
Chegar num inebriante pavão
À fronteira a cruzar,
Não mais voltar.
Ela ficou sozinha, sim, mas atenta. E agora, qualquer gesto quotidiano se tornou numa ameaça a combater. Até que numa noite como tantas outras a mulher colou o ouvido na parede e ouviu a criança falar enquanto brincava no seu quarto – já quase nos esquecíamos desta personagem. Então, aterrada, contemplou a derradeira confirmação da sua teoria: “Há anos que os danados falam com a nossa criança. E ela responde-lhes, brinca com eles, ensina-lhes os caminhos da nossa casa e abre-lhes as nossas portas. Criatura ingrata… Maldita sejas.”
A criança: Haverá alguma coisa entre as teclas pretas e as teclas brancas de um piano? Se sim, é nesse espacinho mínimo que encontramos esta cria, encolhida até ao limite para não perturbar todas as tríades equilibradas e perfeitamente descritas nos manuais de teoria. Não admira que quase nos esquecêssemos dela.
O pai e a mãe viviam para os seus problemas, fechavam-se nos próprios pesadelos, tinham sempre algo urgente para resolver (essas coisas muitos importantes das vidas muito importantes dos importantes adultos) e não deixavam que faltasse nada em casa. Então a cria, que já quase não ocupava a sua própria existência, foi tendo cada vez mais dificuldades em ter a atenção deles e não se sentia no direito de abrir a boca para os incomodar com as suas coisas pouco importantes da sua vida pouco importante de criança. Era um sossego. As notas eram boas, não dava problemas e a sua invisibilidade parecia ser o preço a pagar para tentar merecer o olhar dos pais, ou pelo menos, parecia ser esse o caminho para se sentir menos como um hóspede inconveniente que não tinha mais para onde ir. Além disso, se nunca lhe faltou comida, roupa e todas as coisas básicas, isso devia ser uma espécie de amor, não? Na escola, como em casa, era invisível: falava e ninguém ouvia; quando ouviam, não entendiam; ficava fora das rodas que se fechavam à sua frente; não conseguia interessar-se pelas mesmas coisas que faziam o resto do recreio delirar; era uma criança silenciosa e isso autorizava os demais a tratá-la como uma coisa qualquer que vive entre parêntesis, mesmo que nem do seu comportamento se apercebessem; tinha uma forma de sonhar intransmissível, incomunicável e foi aprendendo a estar só sem questionar se era isso que preferia. Ao longo do dia escolar ia acumulando no seu pequeno corpo um peso que se tornava colossal, também ele invisível. Então, poder chegar a casa, subir a escada e chegar à segurança do quarto era um alívio.
“Cheguei a esbarrar contigo na rua uma ou duas vezes e olhei-te nos olhos. Mas tu nunca deste por isso. Era incrível como não me vias.”
A Trilogia de Nova Iorque [O Quarto Fechado], Paul Auster
Um dia, a criança abriu uma gaveta e, em vez dos habituais globos brancos que eram as suas meias enroladas aos pares, estavam inúmeras pequenas cabeças que se desembrulharam e ergueram alto imediatamente, abrindo dezenas de olhos à luz do dia. À medida que subiam, a criança pôde ver que elas estavam acopladas a uma cabeça maior, também ela muito branca, para depois ficarem todas um longo momento, mais do que seria confortável, a olhar muito sérias, como se vissem tudo em todas as direções. Depois começaram um pequeníssimo e misterioso sorriso que se manteve muito tempo, sempre sem pestanejar: “Hallo” – disse o cardume branco, e o seu eco ressoou dentro do pequeno quarto como se já fizesse parte da mobília.
Os dias passaram sem que Denkerschwarm, o cardume, largasse a mão à criança, sempre a lançar-lhe um olhar muito atento e simultaneamente, a vigiar todas as direções para a proteger. Com o tempo, nos momentos de maior solidão, outros companheiros invisíveis vindos de diferentes nações apareceram e passaram a fazer parte da vida da criança a tempo inteiro. Organizavam cenários meticulosos durante horas – para no fim, muitas vezes, nem sequer começarem a brincar – tinham conversas animadas e ouviam música no rádio a pilhas (numa tarde como tantas outras, ouviram na rádio alguém afirmar que para se ser ouvido neste mundo era preciso saber falar inglês, o que, obviamente, despertou o interesse da criança em dominar este idioma; e foi assim que a partir desse dia, o inglês passou a ser a língua oficial dos cinco). Falavam diferentes línguas e encorajavam a criança a conhecer sítios novos: sem sair daquele quarto e, recorrendo apenas a uma caixa de cartão que servia de avião (de nave! de tapete voador!) a cria entrava na caixa, levantava voo e fazia uma razia à realidade até chegar a sítios totalmente novos. Conversava em qualquer língua com quem quer que cruzasse o seu caminho, aprendia costumes, escutava, opinava, fazia parte.
Quem eram os outros amigos invisíveis?
Turacscópio: Antigo funcionário imaginário do Arquivo Nacional da Torre do Tombo do qual foi expulso por desviar para a sua biblioteca pessoal documentos protegidos. É o guardião de uma enorme biblioteca impecavelmente organizada e condensada num objecto tubular semelhante a um caleidoscópio. Com um olhar cirúrgico especialmente dedicado ao detalhe, recolhe, regista e cataloga em tempo real todas as interações da criança com o mundo sem que ela se aperceba sequer. Para aceder às suas notas, gira o caleidoscópio e papagueia rápida e telegraficamente a informação. A sua afeição pelo acto de catalogar faz com que também colecione apaixonadamente informações sobre micetologia, geologia e astronomia. É Turacscópio que segreda ao ouvido da criança detalhes de que ninguém se lembra, fazendo com que esta aparente ter uma memória prodigiosa.
Myr·eaux, grandmaster: fruto do curioso cruzamento entre um dragão e um macaco azul, Myr·eaux alia a astúcia símia com a inteligência anciã de ver longe no tempo – sobrevoando o passado e o futuro. Esta criatura consulta os apontamentos diligentes de Turacscópio para analisar exaustivamente momentos passados, imaginar ações alternativas, detectar falhas e planear estratégias. Como exercício e entretenimento, joga implacavelmente xadrez. Ganha sempre. Apesar da origem francófona, prefere amendoim a manteiga; ainda que comunique com os outros em inglês, Myr·eaux continua a pensar em francês, por isso, é essa a língua que fala quando joga xadrez. Acredita que já viu todas as jogadas possíveis e por isso é incapaz de emoções complexas; admite sem culpa que lhe agrada ver coisas a arder.
Um dia, enquanto a criança observava o próprio reflexo no espelho do armário, reparou que a sua imagem apresentava estranhos contornos metalizados, como que um relevo cintilante de prata. Aproximou-se e estendeu a mão para investigar melhor o que via. O prateado foi-se descolando do universo bidimensional da superfície reflectora e ganhando a forma de uma criatura mecanizada feita de metal espelhado, com penas de pavão a nascer-lhe do escalpe rígido. “Ypno.:távros” – apresenta-se. Outrora considerado um modesto aprendiz de Sófocles, navegou todos esses séculos até chegar a este quarto e é agora o mestre da camuflagem e da imitação, dominando na perfeição as técnicas artificiais de dissimulação e sedução.
– Ensina o teu corpo a reflectir quem te rodeia e conseguirás o olhar de todos. Afinal, quem não gosta de se mirar ao espelho? – disse Ypno.:távros.
– Mas se eu for os outros, continuo a ser eu?
– Tu, quem? Todos os dias confirmas a tua invisibilidade. Tu dissolves-te nos olhos de todos. Vê. – e começou a transformar o seu corpo no da criança.
Ao ouvir estas palavras, os pequenos olhos da criança encheram-se de água, quase ao ponto de transbordar. E ao ver o seu reflexo como uma figura turva e trémula através da lente das suas lágrimas, cerrou os olhos com pavor de tal auto-imagem disforme e negou violentamente com a cabeça. Depois, completamente imóvel e ainda de olhos trancados, disse:
– Ensina-me.
Daí em diante, Ypno.:távros seria o mentor, tentando ensinar a agir como os demais. Tentando.
A mãe: “Criatura ingrata… Maldita sejas”. Era aqui que íamos. No quarto ao lado, a mulher passou a interpretar estas vozes como presenças fantasmagóricas e decidiu tentar confundi-las para que não a apanhassem. Mandou acrescentar divisões à casa, depois criou outros compartimentos dentro delas, nos quais havia câmaras secretas cujo acesso era feito através de passagens disfarçadas nos móveis e nas outras madeiras. Onde havia antes um espaçoso corredor e um quarto, passou a haver dez quartos acedidos por corredores estreitos. Dentro de cada um seccionou sete frações, as quais dividiu três vezes em altura. Não satisfeita, decidiu alterar tecto, chão e paredes, fazendo com que fossem todos ocos e se estruturassem em divisões, que por sua vez davam origem a dois tipos de parcelas finais: uma onde cabia uma pessoa adulta encolhida em posição fetal e outra capaz de acomodar alguém completamente esticado, mas com o peito ligeiramente achatado pelo gesso cartonado. A dada altura, passou a ter de rastejar até chegar ao sítio onde dormiria. Apesar de escolher dormir sempre numa secção diferente do seu labirinto, não havia qualquer efeito de novidade, porque cada parcela era igual à da noite anterior: sem espaço para mudar de posição e cerca de quatro palmos de ar à volta da sua cabeça. Tinha criado uma espécie de fractal arquitectónico, nada aconselhado a claustrófobos. Como se adivinha, desfez-se da mobília para poder empreender a sua tarefa eterna e rodeou-se dos maiores cuidados para tentar enganar aquele que julgava ser o seu destino. As almas penadas não a apanhariam, fosse por que via fosse: mantinha tudo impecavelmente limpo e desinfectado, não comia nada que não fosse confecionado por si, usava sistemas redundantes para trancar todas as portas – verificava-as religiosamente várias vezes ao dia, seguindo uma tabela que identificava cada porta, cada fechadura, cada horário, reagindo intensamente sempre que a criança deixava alguma entrada menos trancada – preparava-se para a eventualidade de possíveis ataques químicos, mantinha-se atualizada relativamente às últimas descobertas da área da saúde (o que incluía fontes oficiais e não oficiais), conservava mantimentos para possíveis longos períodos de isolamento, juntamente com uma farmácia completíssima.
O medo tornou-se pânico, o pânico tornou-se no fim. E de tanto imaginar os seus perseguidores, eles acabaram por se tornar letais.
“(…) a viúva do fabricante de espingardas, que temia que os fantasmas das pessoas mortas pelas espingardas do marido viessem roubar-lhe a alma (…) decidiu então adicionar constantemente novas divisões à casa, criando um monstruoso labirinto de corredores e esconderijos para poder dormir cada noite num quarto diferente e assim conseguir enganar os fantasmas (…)”
A Trilogia de Nova Iorque [O Quarto Fechado], Paul Auster
Quantas voltas ao trinco?
Quantos deuses famintos?
Quantos muros, quantos longes são precisos
Para um grão de pó pousar tranquilo.
Frente, baixo, infinito,
Fractal num labirinto.
Tudo aqui é uma porta de outra porta,
Onde há mais de mil razões para ter medo.
A rir de mim?
Bactéria ágil, só no ar é um festim,
Pesadelo portátil, vírus, ácaros, micro-tudo ruim.
Quem ri no fim?
Zeppelin ou trampolim, ninguém vê e ainda assim,
Meio rim, meio quindim para um verme vil.
Parte um osso a tossir, ou pior: morrer, partir…
Sim, sim, o fim. Não é difícil!
Cair da cama ao dormir é fácil, tudo é frágil.
Mil-patas, barata, rato, aranha, insecto, acetilsalicílico – Estarei febril? – ardil etílico – Ouvi a rir em francês? A rir de quê?
Quem ri aí?
Intenção e ação não é igual, quem vive do outro é canibal, é fatal.
Qual o átomo mágico, básico de que é feita a Cela? De nada!
Toda uma vida fracamente mapeada, uma francamente só bastante má piada,
Ou talvez seja melhor tomar um copo de água
Mas cuidado com o pH, sabe-se lá!
Já para não falar do facto de usarmos o mesmo ar
A contar do primeiro alvéolo pulmonar!
Novichok é tão real, escuta, é tal e qual mal natural, boçal, abissal, letal,
-Ah!
Range a entrada, mal fechada, vem da escola e não se cala,
Fala e fala com o nada. Qual cilada?
Está filada que será vencedora neste jogo em que é melhor ficar calada.
Dame h5. À ton tour.
Ninguém, não há quem morra
Enquanto ressoar num corpo vivo.
Eles vão e eles vêm, vêem tudo
Depois do muro e deste escuro.
Tarde, para lá da noite,
Sombra da hecatombe.
Foi por quem?
Para o mal e para o bem
Eu vejo, eu vejo, eu vejo, eu vejo, eu vejo, eu vejo, eu vejo, eu vejo, eu…
“(…) a caixa de cartão [de um electrodoméstico novo] era o seu lugar secreto (…) e quando se sentava lá dentro e a fechava, podia ir para onde lhe apetecesse, podia estar onde lhe apetecesse estar. Mas se mais alguém se enfiasse na sua caixa de cartão, a magia ficaria perdida para sempre”
A Trilogia de Nova Iorque [O Quarto Fechado], Paul Auster
Voltar da escola
Chove sempre com tanta força.
Casa,
Escada,
Quarto,
Aos pés da cama,
Meio avião, meio caixa de cartão.
E voar, zarpar até onde se escuta quem fala baixinho,
Rente ao mundo, de mão à sua mão.
[… Para se ser ouvido neste mundo, para se ser ouvido, há que falar inglês…]
Lápis, papel, turma imaginária, página 3.
E voar, zarpar, até onde não é rafeiro nem cão,
Rente ao mundo, de mão dada, apertada à sua mão.
Senta um pouco poliglota,
Não se cala, não se acorda,
Não aqui, ao menos não aqui, ao menos agora,
Não se cala, não se acorda.
À casa torna, mas nem sempre alguém repara.
Uma casa onde amigos imaginários são poliglotas e talvez até joguem xadrez.
Oh how they come and go, they come and go…!
Deixo o eixo, eis o trecho, três e mexo, fecho a fenda, horrenda emenda, ou rente à cena, abranda, aprende, pena, prenda-algema! Aumenta o mentor do menor ou rota de norte: derrota de robe, de errático bode e bile de pobre, porte nobre – Era agora! Ora, ora…
Oriente em frente, freia o dente, firme entende: fera ascende, ente ingente, enchente e medo em mapa-mente, lentamente lembra o lema: algo, alguém, algo, alguém, algo… Alguém ao leme? Além!
Além, lenha para queimar, marca quem emaranhar arame ou sanha (aranha aranha, apanha apanha) a pinha, a minha, ameba sozinha, mesquinha, pisca esquina vira à esquerda, escuda, escuta.
Escuro surdo, susto brusco, lusco-fusco, jugo-chumbo, chuto um bicho
sh sh sh sh
baixo, baixo, baixo desço, gesso espesso, opresso esse peso, peço e vejo.
Como se atrevem a rir agora?
Nem sequer um obriga-
Ein Lämpchen wandert
In unsrem Stamme
Mit heller Flamme
Von Hand zu Hand.
ἐ-γέλασε τοίνυν ὁ Σόλων, καὶ δέχεται τὸν ἄνθρωπον φιλικῶς.
Ce valet d’échafaud, cet opprobre vivant,
Ce monstre à face d’homme, un regard satanique,
Qui goûte en l’agonie un plaisir frénétique (…)
Terceiro patamar, seguir em frente. Virar à direita até o final do corredor. Esquerda, subir as escadas. Entrar na parede da esquerda pelo azulejo entre o quarto e o quinto degrau. Trepar a caixa de ar dois, quatro, cinco metros e setenta e três centímetros, procurar puxador embutido, empurrar, seguir agachado até meio do meio-corredor até à interseção, virar à direita, entrar de cabeça para baixo no alçapão escondido pelo tapete, abrir a portinhola a norte e não uma das outras cinco. Deslizar pela conduta diagonal até-
So in the end
Close of a long day
Whole body like gone.
Time she stopped. Time she stopped. Time she stopped.
Uma personagem encaixotada. Gostávamos que tivesse sido diferente, mas foi exactamente isto que aconteceu: a criança tornou-se adolescente e depois gente grande sempre dentro daquela mesma caixa. Aquilo que tinha sido outrora uma mera embalagem de cartão, tinha esbatido os seus pigmentos até ser praticamente transparente e as suas formas cresceram e acomodaram-se às dimensões do corpo adulto. A todo o momento, permanecia à sua volta aquele muro invisível, a lembrar que a esperança tinha sido perdida para sempre, que o comboio da normalidade já tinha partido há muito e que era agora irrecuperável.
Então, já que ninguém lhe confirmava a existência, já que parecia invisível aos olhos dos outros, decidiu aproveitar essa indiferença e desatou a experimentar as variadíssimas formas de ter prazer enquanto se destruía e chegou a acreditar que conseguiria entorpecer-se diariamente. Bebia, envolvia-se em zaragatas, drogava-se com uma ampla variedade, fez do próprio corpo gato-sapato. Zangou-se com os outros. Zangou-se consigo. Zangou-se com o mundo quando percebeu que a sua própria existência era só mais um consumível da máquina ultracapitalista, e que mesmo a sua profunda tristeza só era alvo de atenção por parte do sistema porque isso começava a afectar seriamente a sua produtividade.
Um copo voador,
Soco sem dor,
Nariz pisado.
Foi sangue e foi um gosto
De metal e ferro
Num lábio aberto.
Sabor de zinco, cobre,
Som de fósforo e querosene.
Céus, qual é o drama
De agradar à própria carne?
Que esbarre e
Caia só,
Fumo e pó,
Tudo o mesmo gole.
Partir uma costela que é que importa, se há um baú com vinte e tal?
O que acontece no meu pobre corpo não me acontece a mim.
Céus, qual é o drama
De agradar à própria carne?
A cruz vai arder
Nem que o corpo arda também.
Um sangue, um rasto, um fogo com razão.
Mais uma birra dessa arma passiva de destruição produtiva, criança mimada, abusiva.
Troco?! Doses homeopáticas de prazer e ficar a ver.
Alvo tão fácil: nem se pensa, nem se move, nem se pensa, nem se move.
E em cada corpo, um Cocktail Molotov.
Os seus fiéis companheiros vinham implorando por sensatez, pediam-lhe que tentasse mais uma vez e traziam memórias das viagens pelo mundo, dos jogos de dominó ao fim da tarde, das contagens decrescentes até ao pôr-do-sol, falavam sobre regressar a um ponto em que tudo era bom e simples, um ponto em que pudesse talvez recomeçar. Eles sabiam o que viria depois de tudo isto, conheciam suficientemente bem a sua ex-criança para saber como ela se sentiria quando chegasse ao fundo desta cave e achavam-se no dever de a proteger.
Mas numa noite de monumental intoxicação, esta pessoa adulta – e por isso, com direito a vetar a sua própria vida – dispensou violenta e definitivamente os seus amigos de sempre.
Então Denkerschwarm, Turacscópio, Myr·eaux e Ypno.:távros desapareceram no ar, cada partícula como que evaporada.
A cave depois da cave, depois da cave, depois da cave, depoisda cave,depois dacavedepoisdepoisdacavedacave depoisdacavep oisdac avede po isd ac a ve
Sh…
Não é razão para tanto.
Tecto e pão não faltou nada.
Criatura alimentada, educada, tolerada.
Era uma casa mesmo, mesmo, mesmo muito engraçada.
Depois de todos os outros, depois de deixar cair, depois de não mais não, mais não, mais não, mais não… depois da cave, depois da cave, depois, depois…
Sem raiva.
Ninguém deu permissão.
Não há um nome para uma história
Que foi sepultada sem ser contada.
Não há derrota se não há lutar:
calar
a boca
e esperar
poder
voltar.
Não exageremos,
Lembra-te que és pó.
Ainda que não se fale muito sobre os aspetos práticos da vida de alguém que se sente no fundo do poço, a verdade é que muitas vezes essa pessoa continua a ter de sair de casa para levar o lixo à rua, ou para ir ao supermercado comprar comida. Foi o que compreendeu também a ex-criança ao contemplar o profundo vazio do seu frigorífico e o ainda mais profundo vazio do seu estômago.
De olhos no chão, esbarrou acidentalmente com alguém que vinha na direção oposta do passeio: Lucky.
E passaram a caminhar lado a lado.
Lucky falou-lhe das pessoas que vivem com pressa, perdidas e sós, que gastam a vida inteira dentro das próprias caixas, incapazes de pedir ajuda para desatar os seus próprios embaraços, à espera que os dias felizes cheguem milagrosamente.
– São cada vez mais. – disse Lucky – Centenas de milhares de crianças em corpos de adultos, sem conseguirem sair das suas caixas, cada uma com a sua dificuldade. O mundo há-de arruinar-se em breve, porque há cada vez mais pessoas que já não sabem olhar ou ser olhadas e por isso estão mais sós. Será cada vez pior e eu não creio que reste uma vida que valha a pena ser vivida aqui no planeta Terra.
– Então não há esperança?
– Não creio.
– Nem para mim?
– Eu vejo-te. Tu vês-me. Tu já és visível. Talvez sempre tenhas sido. – respondeu Lucky – Bem, eu vou embora, junta-te a mim se quiseres.
E foram.
Um passo errado, tombado, esbarrado
Melhor assim, nada aqui foi ensaiado.
Tropeço sem preço, começo do avesso,
Qual presa? Qual dos dois o mais indefeso?
Tudo o que há, tudo em nós lançamos.
Um passo atrás atrasamos, paramos
Para ver melhor quem nos olha, quem nos vê.
Só… recuperar um pouco o fôlego se der.
Recuperar o mais perfeito dos plurais,
Primeira das pessoas, soma do que que sobra,
Tudo o que há, tudo em nós, por fim, perdoar.
Abrimos todas as janelas dentro ou fora de órbita.
Tempo de parar, escutar.
Se for mesmo para voar, voemos longe.
“Lucky, Lucky, Lucky… Tudo em nós são ouvidos.”
Longe da cidade, um veículo espacial perfeitamente equipado aguardava a sua tripulação para levantar rumo ao infinito.
Antes do nascer do sol, uma multidão que cobria já todo o território visível, pessoas vindas de todo o mundo, esperavam de pé dentro das suas caixas invisíveis. Observavam com atenção e admiração essoutro humano que tinha conseguido fazer aquilo para que elas ainda não tinham encontrado coragem.
Até que a nave levantou e deixou todas aquelas cabeças levantadas, céu vermelho de espanto.
Plano
Curva
Arco
Esfera
Antes do Sol, quem nasce somos nós.
Fica o atlas só janela,
Um tudo-nada azul.
Olhamos de frente,
Viramos costas
Rumo ao poema.
A canção já chega a Júpiter
E a Terra encolhe,
Criança pequena.
Qual ciclópica bruma!
É tempestade em carne viva.
Tocamos no ombro o mundo:
“Calma, não vai sentir nada”
Ser-se cedendo ao sempre sendo tudo ao mesmo tempo, ser-se cedendo ao sempre sendo tudo ao mesmo tempo, ser-se cedendo ao sempre sendo tudo ao mesmo tempo.
E aquela palavra – esta –
Fica dizendo-se a si mesma.
E as próximas já orbitam Urano,
Colosso gelado.
É isso,
Voltar
Se ainda há tempo.
É que não, não, não,
Não é doença, é cura, caramba.
E se ficarmos seremos só mais um quarto fechado.
Oh Plutão, Plutão, Plutão…
Foi por pouco, querido anão.
Get on with it from there
Get on with it from there
Get on with it from there
Get on with it from there
Mas para onde iriam, afinal? Onde pousariam a nave? Pousariam, sequer?
Andaram e andaram – voaram e voaram – mas nenhum sítio parecia o ideal. O entusiasmo que os fez ultrapassar a estratosfera começou a perder viço e a gerar dúvida. Às vezes, distraíam-se com a maravilha que lhes aparecia na janela e logo depois voltavam a desconfiar da decisão que tinham tomado. Então decidiram ser francos: sair do planeta tinha sido também como permanecer numa caixa, porque virar as costas a todos tinha sido desistir e admitir que a indiferença tinha triunfado.
Ao pousar, a multidão aplaudiu em algazarra. A esperança de conhecer os dois astronautas fê-los permanecer ali e confiar que eles regressariam. Quando a porta da nave abriu, descolou-se uma fenda de silêncio.
– Querem ouvir-te. – disse Lucky.
– Mas eu não sei fazer isto de olharem para mim.
– Olha tu também.
Ao ver toda aquela gente, a ex-criança pensou nas suas viagens imaginárias em que zarpava pelo mundo inteiro e era capaz de falar qualquer língua, com qualquer pessoa. Então começou. E a cada frase proferida, o planeta foi acordando e convocando todos os seus moradores desde o princípio, todas as testemunhas da história – seres reais e criaturas que habitaram a imaginação da humanidade. A Terra abriu fendas, irrompeu vulcões, ferveu lagos sulfurosos, fez juntar todos os continentes até ser tudo Pangeia outra vez. Então humanos, pelicanos, girafas, pterodáctilos, centauros, bisontes, grifos, zebras, ciclopes, baleias, jibóias, triceratops, faunos, sereias, orangotangos, krakens, elefantes, minotauros olharam-se.
Era um sonho de bolso, primeiro,
Poema amarrotado:
Acorda o mundo imenso
Para ser também olhado.
Cordilheira rosto de um povo,
Vulcão de ciclope ao colo,
Rompem abismos abissais,
Deserto sarando o choro.
Dialetos, todos ou nenhum,
Uma língua a ser voada.
Centauro, grifo, girafa,
Tudo cores da mesma arara.
Voltar à sombra de um ramo,
Manhã sem mapa feito.
Da encosta do passado
Um beijo num amuleto.
Somos o verso que cresce
E cruza a palavra inventada,
Somos o sol a entrar
E a janela escancarada.
Aqui estamos junto ao precipício
Com fauno, baleia e tucano.
Num recomeço sem heróis
Roubamos o fogo a Vulcano.